Recém-chegado ao poder, o governo Temer se apressou a encaminhar ao Congresso Nacional uma Reforma Previdenciária ampla, que não se limita a propor o aumento da idade mínima para aposentadoria, mas que importa em um verdadeiro desmonte do sistema de seguridade social construído paulativamente desde o advento da Constituição de 1988.
Na verdade, propostas regressivas não são novidade, uma vez que a Previdência Social brasileira, nos últimos anos, tem se mostrado errática, oscilando entre tendências opostas: ora avança no cumprimento de promessas constitucionais de construção de uma Previdência Social nos moldes dos países mais desenvolvidos (como na adoção do Nexo Técnico Epidemiológico para caracterização de acidentes laborais ou a utilização da Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde, para benefícios de prestação continuada); ora regride, mal-disfarçando uma preocupação nitidamente fiscalista, pouco comprometida com o modelo público, universalista e solidário previsto na Constituição.
A atual proposta reformista adere despudoradamente à vertente regressiva, repetindo propostas já conhecidas e exaustivamente exaltadas pela mídia como imprescindíveis para “salvar” a Previdência Pública, como o aumento da idade mínima para aposentadoria e mais duros critérios para concessão de benefícios. Mas que, conforme demonstram estudos técnicos irrepreensíveis, como o coordenado pela Associação Nacional de Fiscais Previdenciários (ANFIP)[1], baseiam-se na equivocada ideia de que a previdência padece de crônico deficit previdenciário, algo que não passa de uma fantasmagoria, mas que, em realidade, visa encobrir interesses escusos dos que pretendem inviabilizar a aposentadoria para grande parte dos brasileiros, pensando que, estes, levados pelo desespero, cairão nas malhas de uma cara e arriscadíssima (veja-se o caso do Chile) previdência privada. De fato, se o Congresso Nacional aprovar tal como está a proposta apresentada pelo governo, haverá, praticamente, a extinção da aposentadoria por tempo de serviço, restando apenas a aposentadoria por idade. Aos trabalhadores poderá não existir outra opção senão a de se submeterem aos planos privados, retirando mensalmente de seus parcos ganhos um significativo percentual para uma incerta e indefinida aposentadoria quando não mais tiverem condições de trabalhar.
Porém essas mudanças regressivas não se limitam ao plano legal. Mudanças não menos danosas aos interesses dos segurados são produzidas, de forma insidiosa, sem qualquer debate público prévio, também no plano infra legal. Assim se pode qualificar a recente Portaria n. 152 de 25/8/2016, que consolida a “alta programada” pela qual o Perito “estima” uma provável data de recuperação do trabalhador e, assim, fixa o prazo de término do benefício previdenciário, dispensando a realização do nova perícia.
Ainda mais grave é a recente decisão do Conselho Nacional de Previdência Social (17/11/2016), pela qual o INSS dispensa as empresas de comunicar os acidentes de trajeto e os acidentes de trabalho que não impliquem em afastamento por mais de quinze dias. A medida tem impacto direto sobre o cálculo do FAP (Fator Acidentário de Prevenção) utilizado para determinar o risco de cada empresa e sua contribuição ao financiamento das aposentadorais especiais e acidentárias. Diminuindo o número de notificações de acidentes, diminui também, por um passe de mágica, o índice de risco das empresas e, dessa maneira, reduz-se significativamente a contribuição empresarial ao FAP, que hoje representa 1% a 3% da folha de pagamento. Estima-se que a medida permitirá às empresas economizar entre R$ 2 bilhoes e R$ 4 bilhões, conforme representações de trabalhadores[2], o que é um verdadeiro escândalo em época de economia de gastos públicos, indo em sentido oposto à propalada intenção governamental de redução dos gastos previdenciários.
Como os primeiros quinze dias de afastamento são pagos pelo empregador, candidamente se diz que o trabalhador “não teria perda econômica “.
Não há de se subestimar a gravidade da medida a partir de uma aparente inocuidade da mesma,, já que, em termos econômicos, não haveria prejuízo para o trabalhador. Não se trata, como poderia parecer à primeira vista, de uma simples eliminação de uma exigência burocrática, mas sim, de grave retrocesso que afeta os trabalhadores em geral. Trata-se de mais um passo no caminho de deliberadamente promover o desmanche do sistema de prevenção contra acidentes do trabalho no Brasil.
Para entender a perversidade do que está sendo proposto, atente-se para o quadro, por si só dramático de subnotificação de acidentes laborais, algo que deveria fazer o administrador dotado de um mínimo bom-senso pensar em exigir mais do empregador em termos de comunicação de dados de sinistralidade – e não menos! Desconhecendo a realidade de notária má-vontade dos empregadores em cumprir as normas atuais – que determinam que TODOS os acidentes laborais sejam comunicados, não se pode deixar de reconhecer o evidente caráter simbólico de uma medida administrativa de dispensar os empregadores de comunicar parte dos acidentes acontecidos. Assim, quando se dispensa o empregador de comunicar parte dos acidentes que ocorreram em sua empresa, em verdade, se está sonegando da sociedade o conhecimento sobre o que realmente ocorre em termos de prevenção e segurança no trabalho em determinado ambiente laboral. . O Estado vira as costas à realidade e se omite de parte da fiscalização que, por lei, está obrigado a realizar.
Além disso, a existência de um completo banco de dados sobre os acidentes de trabalho ocorridos representa um dos melhores instrumentos para identificação de riscos laborais, podendo até mesmo dizer que, sem estatísticas confiáveis, não há políticas eficientes de prevenção de acidentes laborais.
Relembre-se que a quantidade e frequência com que ocorrem acidentes de trabalho em uma empresa são essenciais para quantificação do fator de risco que, por sua vez, tem efeito direto no cálculo da contribuição previdenciária patronal. Injustificável que, a pretexto de dispensar o empregador da “burocracia” da comunicação de acidentes “menores” ou “menos graves”, se esteja, na verdade, dispensando o empregador de recolher parte da contribuição devida, justamente no momento em que clama-se pela redução do (como vimos inexistente) deficit previdenciário. Renuncia o Estado à parcela da arrecadação, não se sabe com base em qual norma legal, beneficiando justamente o empregador faltoso que, a primeira vista, falhou em seu dever primário de evitar que o acidente laboral acontecesse.
A idéia de que a Previdência possa desconhecer parte dos sinistros ocorridos no trabalho sob a alegação de “irrelevantes” é mais uma das tantas maldades contidas no pacote de reformas da Previdência que, na falta de qualquer justificativa , refugia-se no cinismo. Assim, ocorreu de se alegar que acidentes que importam em afastamento de até quinze dias não configuram “reais” acidentes: seriam acidente “menores” ou, mesmo, até poderiam ser chamados de “quase acidentes”, já que os acidentes que “interessam” seriam apenas os que implicariam em um afastamento prolongado do trabalhador.
Parece evidente que quando se fazem, com certa coragem e muita desfaçatez – afirmações como esta, não se está pensando realmente na saúde e segurança do trabalhador, mas em prevenir apenas acidentes que impliquem em prejuízos econômicos significativos para o empregador.
Na verdade, conceitualmente não se pode assimilar o “quase acidente” a um pequeno acidente, pois o “quase-acidente”, como se pode facilmente deduzir de sua própria denominação, é um “não-acidente” ou um acidente que poderia ter acontecido, mas não aconteceu (por exemplo, em um obra de construção civil, um elevador cai, mas ninguém se machuca). Além disso, ao contrário do que poderia-se pensar em um primeiro momento, mesmo os “quase acidentes” são relevantes e podem ser fundamentais para uma boa política de prevenção: são claros sinais de que algo de grave poderia ter ocorrido.
Assim, se para uma real política de prevenção, nem a comunicação dos “quase-acidentes” deveria ser dispensada, é completamente irracional que se dispense de comunicação às autoridades públicas parte significativa dos acidentes realmente ocorridos, sob o argumento falacioso de que se tratam de acidentes “pequenos”, porque não lesionaram ou adoeceram trabalhadores por mais de quinze dias.
A medida em questão é realmente absurda sob qualquer ponto de vista, seja econômico, social ou humano, e somente se explica em um contexto de um aberto projeto de desmonte da Previdência pública e de abertura de caminho para os interesses das seguradoras privadas em um mercado de 12 ou 13 bilhões de reais.
Somente podemos entender a ausência de maiores contestações até aqui pelo fato de que, dentro do conjunto de propostas de reformas da Previdência do Governo Temer, esta é uma medida feita na surdina e que (aparentemente) não prejudica, de forma direta, os trabalhadores. Mas, insidiosamente, instala um modelo de descaso público com políticas preventivas, dispensa as empresas de significativo controle administrativo em matéria de segurança e medicina do trabalho e transfere parte importante do custeio previdenciário dos empresários para os segurados e ao contribuinte.
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