Foi com surpresa que o mundo do trabalho recebeu, no bojo da Reforma Trabalhista (Lei 13.467/2017), a notícia de que, após quase trinta anos, o legislador finalmente regulou o art. 11 da Constituição. Foi, também, com alguma perplexidade e muitas incertezas quanto ao futuro desta decisão legislativa tão repentina, que foi tão pouco discutida e que vem de acompanhada de um conjunto de disposições altamente polêmicas e majoritariamente contestadas pelos operadores do direito do trabalho.
Aprovada com inédita pressa, a nova lei se integra agora ao ordenamento jurídico brasileiro e já não cabe mais discutir se ela deve ou não ser aplicada, mas, certamente, cabe ponderar, com a parcimônia e o bom-senso que faltaram ao legislador, a respeito de como e em que condições ela poderá ser aplicada.
O artigo 11 constitucional, como tantas outras disposições da Carta de 1988, traz a marca da ambiguidade, fruto de intensas polêmicas surgidas na Assembleia Constituinte e que foram, muitas vezes, solucionadas por meio da produção de normas abertas que deixam larga margem à interpretação. No caso em questão, o artigo 11 fala em “entendimentos diretos” do representante com o empregador, sem esclarecer como se articulam tais entendimentos com a negociação coletiva para qual os sindicatos são os únicos legitimados. Da mesma forma, a norma constitucional deixa em aberto qual a vinculação de tais representantes (a princípio, eleitos diretamente pelos trabalhadores da empresa) com os sindicatos. Tampouco fica assegurada qualquer garantia ou estabilidade para os representantes, sendo, possivelmente, este o motivo pelo qual tal previsão constitucional nunca tenha sido efetivada.
A não ser em relação ao último (garantia de emprego), a nova lei não traz nenhum avanço significativo. Assim, pela redação dos artigos 510-A, repetindo as palavras da norma constitucional, fica assegurada a criação, no âmbito das empresas, de uma “representação dos empregados” para promoção de “entendimento direto” destes com o empregador, devendo tal representação ser eleita diretamente pelos empregados de empresas com mais de duzentos trabalhadores.
Seria de esperar que, após tanto tempo, a norma legal pudesse ser suficientemente clara e completa para dar a segurança jurídica necessária para tão importante passo no caminho de dar concretude à chamada representação unitária dos trabalhadores nas empresas recomendada pela Convenção n. 135 da OIT.
Nesse sentido, seria altamente recomendável que a lei regulasse a matéria de forma mais desenvolvida, especialmente indo além dos limitados e algo obscuros conceitos do art. 11 da Constituição que, exatamente por sua dubiedade (especialmente no que tange à extensão das garantias prevista no art. 8º, VI constitucional) nunca saiu do papel, tratando-se de (mais uma) promessa não cumprida da Constituição de 1988.
A primeira dubiedade é exatamente qual a natureza (sindical ou não) de tal representação.
Primeiramente, há de se esclarecer que a ideia de simples transplantação da norma internacional tal como está plasmada na Convenção n. 135 para o ordenamento jurídico nacional encontra certa dificuldade, na medida em que tal norma foi pensada em um ambiente de pluralismo sindical, situação bastante distinta da do Brasil, em que se adota, por imposição constitucional, o modelo da unicidade sindical.
Em modelos pluralistas, os sindicatos negociam apenas em nome de seus associados, o que leva a uma indesejada fragmentação da representação dos trabalhadores. Por isso, a negociação unitária para produção de normas coletivos com eficácia “erga omnes” se faz por meio de acordos coletivos (no nível de empresa) ou convenções coletivas (no nível de categoria), em que é recomposta a unidade sindical por meio de artifícios (comissão de negociação unitária, escolha do sindicato mais representativo) em que os trabalhadores se apresentem unidos perante os empresários no processo de negociação coletiva. Nesse modelo pluralista, bem mais do que no modelo unitarista, é preciso prevenir os riscos de uma superposição de atribuições entre sindicato e representação de empresa. Assim, em países que reconhecem capacidade negocial à representação livremente eleitos pelos trabalhadores da empresa (Convenção n. 135, art. 3º, letra “b”), de forma a norma internacional (Convenção n. 154, art. 3º), expressamente admite que a lei ou a prática nacional possam determinar até onde pode se estender a negociação coletiva com tais representantes, sempre tomando-se medidas apropriadas para garantir que a existência destes representantes não seja utilizada em detrimento da posição das organizações de trabalhadores interessadas. Da mesma forma, sempre que uma empresa tiver, ao mesmo tempo, representantes sindicais e representantes livremente eleitos, deverão ser adotadas medidas apropriadas para evitar que a presença dos representantes eleitos possa servir para enfraquecer a situação dos respectivos sindicatos ou dos seus representantes (Convenção n. 135, art. 5º). Há de se lembrar que a sobreposição de representação pode ser utilizada pelo empregador para entorpecer a atuação sindical, sendo esta uma das maiores preocupações da OIT que, na Convenção fundamental n. 98 veda a interferência do empregador ou de uma organização de empregadores na criação ou manutenção de organizações de trabalhadores com o fim de coloca-las sob seu controle (Convenção n. 98, art. 2º, 2).
Em modelos unitaristas, como no Brasil, tais riscos são consideravelmente menores, já que, por definição, os sindicatos detém a exclusividade da representação dos trabalhadores (art. 8º II, Constituição) e tem participação obrigatória na negociação coletiva (art. 8º, VI, Constituição). Enquadra-se o Brasil no que prevê o art. 3º, letra “b” da Convenção n. 135, ou seja, países em que as funções negociais não se estendem às atividades que são reconhecidas como dependentes da prerrogativas exclusivas dos sindicatos.
Nesses termos, pode-se afirmar, com convicção, que a representação dos trabalhadores previstas na Lei n. 13.467/2017 não tem natureza sindical.
Outro ponto duvidoso são os limites de atuação desta representação dos trabalhadores na empresa.
Por certo, não são delegados sindicais e, assim, não se cogita de uma representação que atue com poderes delegados do sindicato, dentro dos limites que estabelece a norma coletiva ou os estatutos sindicais. No Brasil, tanto a representação sindical como a negociação coletiva são exclusivas do sindicato único categorial – não se reconhecendo qualquer poder negocial às chamadas “comissões de negociação de empresa”. Estas não se confundem com a representação prevista no art. 11 da Constituição e, conforme jurisprudência do TST, s possibilidade dos trabalhadores negociarem diretamente com seus empregadores restringe-se à hipótese de que trata o artigo 617 da CLT, ou seja, quando o sindicato e a Federação que os representa, comprovada e sucessivamente, embora chamados, recusarem-se a assumir a direção da negociação (RO 2310920155170000 – Relatora Dora Maria da Costa). Da mesma forma, acórdão do STF pelo qual é nulo o acordo coletivo celebrado entre a empresa e comissão interna de negociação da empresa, sem a participação do sindicato profissional (ARE 650576 MG – Relator Ricardo Lewandowski). TST.
Assim, por definição, a nova representação de trabalhadores nas empresas é destituída de qualquer atribuição negocial.
Não sendo possível a negociação coletiva, qual seria o conteúdo real desse “entendimento direto” entre representantes e a empresa que, por expressa determinação constitucional deve ser a finalidade exclusiva de tal representação.
Antes de tudo, há de se interpretar tal exigência de exclusividade do legislador constituinte como tendo a clara intenção de evitar que a nova representação de trabalhadores na empresa não fosse assumida com um mero acréscimo de funções de outras comissões representativas já existentes, como a Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (CIPA, art. 163 CLT), a Comissão Paritária sobre Participação dos Trabalhadores nos Lucros ou Resultados (Lei n. 10.101/2000) ou, mesmo, a Comissão de Conciliação Prévia (Lei n. 9958/20000. Porém, definir o que seriam esses “entendimentos diretos” – e no que eles se diferenciam da “negociação coletiva” para a qual os sindicatos têm exclusividade e participação obrigatória nos termos do art. 8º, II e VI da Constituição Federal – é uma tarefa bem mais difícil, para a qual a redação do artigo 510-B da nova lei ajuda pouco.
Voltando ao questionamento quanto à abrangência das atribuições dessa representação, pode-se supor que estas serão bastantes restritas, sob pena de configurar uma duplicidade representativa não admitida pela norma constitucional. Assim, a comissão de representantes não pode promover qualquer negociação em nome dos representados, mas apenas servir como um intermediário entre os trabalhadores que o elegeram e o empregador para demandas muito específicas relativas a condições de trabalho, limitadas ao âmbito empresarial e que, em caso de entendimento, não tem natureza de obrigação de cumprimento por parte do empregador, nem de compromisso de reciprocidade por parte do empregado. No caso de atendimento pelo empregador da demanda, tal concessão não terá caráter negocial, mas será ato unilateral, de natureza meramente benéfica, que se insere no âmbito do poder regulamentador do empregador. Portanto, o fruto eventual dos entendimentos diretos será uma norma interna da empresa que se incorporará aos contratos de trabalho com alteração unilateral por iniciativa do empregador, com os limites e condições previstas em lei, especialmente a inalterabilidade das alterações unilaterais lesivas previstas no art. 468 da CLT.
Nesses termos, analisando-se os incisos do art 510-B, vemos, nos incisos I e II, as atribuições de “representar o trabalhadores junto ao empregador” (na redação tautológica do inciso I), “aprimorar o relacionamento entre empresa e seus empregados com base nos princípios da boa-fé” (inciso II) e “promover o diálogo e o entendimento do ambiente de trabalho com o fim de prevenir conflitos” (inciso III) nada mais são do que expressões vagas que mais manifestam uma declaração de propósitos do que definem um rol de funções.
No que tange ao contido no inciso IV (“buscar soluções para os conflitos decorrentes da relação de trabalho, de forma rápida e eficaz, visando à efetiva aplicação das normas legais e contratuais”), em função de possível paralelismo com as atribuições das Comissões de Conciliação Prévia, há de se entender que as funções da Comissão de Representantes previstas na nova lei se limitam a atividades preventivas – e não de solução do conflitos já existentes.
Apenas nos três últimos incisos (V, VI e VII) pode-se, efetivamente, encontrar funções de entendimento genuinamente ainda não cobertas nas relações de trabalho atuais, que justificam normas que permitam ao empregador, abrindo mão de parte de seu poder de direção, estabelecer mecanismo de diálogo, pelas quais seus decisões relativamente a casos pontuais e de interesse menor (que não tenha relevância que justifiquem a intervenção sindical) sejam previamente discutidas, democrática e transparentemente, com os representantes dos trabalhadores. Assim, pode-se prever que tais entendimentos diretos a respeito de tais demandas específicas e pontuais, assim como sobre políticas de não-discriminação e de melhor cumprimento das normas previdenciárias e trabalhistas, inclusive normas coletivas, possa configurar um campo promissor para implementação das novas regras celetistas.
Por outro lado, pelos motivos já expostos, não se poderá excluir de participar de tais entendimentos o sindicato, sempre e quando este entender haja interesse coletivo relevante a ser representado pelo entidade sindical dentro de sua participação exclusiva e obrigatória.
Temos, assim, em função do paradoxo de adotar-se uma representação não-sindical em um modelo unitarista que reserva ao sindicato o monopólio da negociação, unitário, o surgimento de uma figura nova, a de uma representação sem poderes de contratar coletivamente, que atua em uma faixa restrita e residual de negociação.
Clarificando ainda mais a natureza e o papel de tal representação, ela se aproxima mais da figura de um facilitador do entendimento, de um colaborador com tarefas consultivas, de um ouvidor (“ombudsman”) - ou, até mesmo, de um “diretor eleito” nas empresas que adotam a cogestão - do que de um representante sindical. Assim, a previsão de organização independente (art. 502-B parágrafo 2º) e de garantia de uma estabilidade no emprego (art. 510-D, parágrafo 3º) não visa assegurar o exercício de um direito de oposição (como no caso da representação sindical) mas assegurar a liberdade de opinião e ação de um colaborador que se deseja que atue de forma independente.
Grandes dúvidas pairam também quanto à eleição da novel representação na empresa, em especial quem convocará e organizará as eleições dos representantes dos trabalhadores, quem presidirá o processo e quem serão os responsáveis.
A nova lei, de forma paradoxal, diz que fica vedada a interferência da empresa e do sindicato da categoria (art. 510-C, parágrafo 1º). Há de se perguntar: não seria altamente desejável que fosse justamente o contrário: que fosse o sindicato que comandasse o processo? O que justifica a exclusão do sindicato quando o desejável seria incentivar uma relação harmônica entre a comissão de representantes e o sindicato, não somente para legitimar os entendimentos da comissão com o empregador, como também para assegurar a maior efetividade dos resultados de tais entendimentos, já que seriam melhor reconhecidos e aceitos por todos.
Por outro lado, como será possível que a empresa fique alijada do processo de organização e execução da consulta eleitoral? Será que esta poderá ser imposta à empresa independentemente de sua vontade? Será razoável interpretar a norma como proibindo que o sindicato possa, ao menos, fiscalizar o processo eleitoral?
Admitida a possibilidade de tais exclusões, haveria necessariamente de se regular detalhadamente todo o processo, incumbindo alguma autoridade imparcial para presidir e coordenar as eleições, juntamente com os candidatos interessados, provavelmente recaindo a escolha desse terceiro imparcial no Ministério do Trabalho, no Ministério Público ou, mesmo, na Justiça do Trabalho, seja para viabilizar concretamente as eleições, seja para garantir a imparcialidade pretendida pela própria lei.
Parece que a melhor solução será desconsiderar esta algo absurda exclusão do sindicato e do empregador, de forma que todo o processo seja livremente acordado em negociação coletiva como, aliás, já prevê o novo art. 611-A, VII celetista. Nesse caminho, nada impede que, por convenção ou acordo coletivos, faculte-se ao sindicato indicar um ou mais membros na comissão de representantes, aproximando esta do modelo de colaboração entre diferentes organizações de trabalhadores existentes na mesma empresa, como indicado no artigo 5º da Convenção n. 135 da OIT:
Quando uma empresa tem, ao mesmo tempo, representantes sindicais e representantes eleitos, deverão ser tomadas medidas apropriadas, sempre que tal se verifique, a fim de se evitar que a presença dos representantes eleitos possa servir para enfraquecer a situação dos respectivos sindicatos ou dos seus representantes, e também para encorajar a cooperação entre os representantes eleitos e os sindicatos e seus representantes, em todos os assuntos pertinentes.
A indicação de tal representante não o transformaria em um delegado sindical, nem alteraria a natureza da representação, mas configuraria um ato de colaboração do sindicato ao mesmo tempo que indicaria uma forma de democratização da gestão empresarial.
A assunção pelos sindicatos e empresas da regulação dessa matéria por convênios coletivos seria, talvez, a melhor forma de esclarecer estas e tantas outras dúvidas que suscitam a leitura da nova lei. Entre os principais pontos, ainda, a regulamentar estará a concessão de aos representantes dos trabalhadores de outras garantias que não estão contidas no art. 510 parágrafo 3º, mas uma proteção abrangente no termos da prevista na Convenção n. 135, art. 1º:
Os representantes dos trabalhadores na empresa devem beneficiar-se de uma proteção eficaz contra todas as medidas que lhes possam causar prejuízo, incluindo o despedimento, e que sejam motivadas pela sua condição de representantes dos trabalhadores ou pelas atividades dela decorrentes, pela sua filiação sindical ou pela sua participação em atividades sindicais, na medida em que atuem em conformidade com as leis, convenções coletivas ou outras disposições convencionais em vigor.
De fato, sem ampla negociação entre sindicatos e empregadores pouco promissoras são as perspectivas de que tais disposições legais não caiam na mesma letargia do art. 11 da Constituição.
Estas são apenas dúvidas iniciais, mas que indicam a insuficiência e inconsistências das novas disposições legais. De fato, pouco se poderia esperar de uma regulamentação açodada, pouco democrática, com precário debate parlamentar e que não aceitou qualquer contribuição de especialistas e atores sociais durante todo o processo de elaboração. O resultado somente poderia ser uma norma de baixa qualidade, que encontrará enormes dificuldades para sua implementação e que, mesmo com os melhores esforços dos atores sociais, na melhor hipótese, trará mais que duvidosos benefícios à sociedade.
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